terça-feira, 24 de março de 2009

Big Bang

O mais irónico era que só me sentia vivo quando ameaçavam matar-me. Matar-me não, isso faria de mim um ente passivo; quando ameaçava morrer. Morrer-me. Porque era eu que o fazia, quando me deixava invadir por aquele desespero inerte da tristeza; não um tipo de desespero raivoso, que impulsionasse à acção, ao frenesi, enfim, que conduzisse, através da cinética forçada, à sua solução e extinção; em vez disso, um desespero puro, redondo, nuclear, que girasse lentamente em seu torno, e que se materializava no meu peito directamente a partir do vazio que nele, de vez em quando, se criava, ocupando todo o espaço e empurrando todos os meus órgãos internos para fora de mim mesmo. Em mim, essa característica ia e vinha como uma maré. A sua principal consequência era a de me fazer repensar. Repensava tudo, quando me sentia vazio. Como se me apercebesse da importância relativa das coisas, como se me apercebesse que todas as minhas certezas não eram, afinal, senão o resultado de uma específica aleatoriedade de circunstâncias, como se me apercebesse que todas as minhas decisões tinham sido, afinal, tomadas por mim e em meu nome. Como se me apercebesse, enfim, do vazio que também eu era – ou da forma como, naquele preciso momento, me encontrava vazio de quem era afinal. Indagava depois, por inferência directa, se o facto de me constatar vazio de mim mesmo implicava que esse conceito de "mim mesmo" não existisse, ou, pelo menos, não da forma como o supunha; seria eu aquele ser impensante, movimentando-se na cinética da vida e sorrindo à passagem de cada poste rasante, ou seria eu o invólucro de agora, despojado de todas as referências materiais que lhe conferiam, afinal, significação? Apercebi-me então da falácia em que toda esta lógica me poderia estar a induzir. Forçara-me a tomar como base as leis da física, que não conseguem conceber esse Nada de onde supostamente nascemos. Tomamos como início de nós próprios, ou, mais transcendentalmente ainda, do Universo que nos criou, uma gigante explosão que adveio do puro vácuo. O que há no vácuo que o faça explodir? Como pode explodir algo que não existe? Como pode "nada" colidir consigo mesmo, gerando uma energia tal capaz de gerar todo um Universo, todo um movimento de moléculas e átomos que ainda hoje continua em expansão, um movimento cinético que está, afinal, na base da vida, na base do Espaço, na base do Tempo, como pode advir tudo isso do Nada? O que é o nada, afinal?

Seria isso que se gerava dentro de mim? Talvez não fosse um vazio, vazio, mas sim um Vazio-Nada, que ocupasse espaço, que comprimisse espaço, que distorcesse e alterasse as variáveis desse modesto universo que era eu, no meu reduto toráxico; uma espécie de volume negativo, onde fosse criado talvez todo esse movimento distorsivo que me permitisse repensar-me, reagrupar todas as minhas moléculas e reajustá-las, para melhor ou para pior, experimentando em mim mesmo novas sensações de gravidade, peso, humidade relativa, rarefacção de oxigénio, orquestras sinfonico-linfáticas, e me permitisse, a determinadas alturas da minha vida, ser afectado pelas mais variadas doenças congénitas, sem que no entanto tivesse qualquer base hereditária e genética para as ter: gases, prisão de ventre, soltura, má circulação sanguínea, asma, diabetes, icterícia, reumatismo, artroses, gota, pé de atleta, equimoses várias, pele seca, pele oleosa, queda de cabelo, hirsutismo; e ter varicela, sarampo e papeira, rubéola e um tumor cerebral, sempre novo, às terças-feiras de cada mês; e que cada uma dessas doenças funcionasse como uma nova droga, causando novas sinapses, novas reacções químicas, que me alterassem a forma como cheirava as folhas das árvores depois de chover; causava-me sempre uma enorme surpresa o facto desse cheiro supostamente tão familiar e banal conseguir surpreender-me sempre, de cada vez que aparecia; não me surpreendia como se fosse novo, surpreendia-me mais pelo facto de parecer, de cada vez que surgia, radicalmente diferente daquilo que fora; como se cada chuvada tivesse, afinal, um cheiro próprio, efémero, resultado de uma combinação específica de água, um determinado tipo de folha de árvore e a doença que me assolasse os sentidos naquele preciso momento; um cheiro que existia uma única vez e jamais se voltaria a repetir; e, como se tomasse consciência de tudo isto, e da sua existência na unicidade destes termos, contemplava o enorme milagre que me era dado, esse, de poder cheirá-lo; e pensava então que talvez aquele vazio inicial, que gerou o Big Bang, fosse na verdade um cheiro; um cheiro que não adviesse de coisa nenhuma, mas que existisse por si mesmo; um cheiro imperceptível e único, de tal forma subtil que se assemelhava a nada e de tal forma forte, poderoso e intenso que se explodira em si mesmo, gerando o Universo inteiro.

Talvez o Universo não fosse nada mais do que um simples perfume. E, de alguma forma, esse era para mim um conceito animador.