quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Contemplação *

Como se o vento parasse,
ela morria. Não tem
nome pois não tem alma.
Não chora pois o sangue
não lhe corre nas veias,
não canta pois já gritou
toda a voz que nunca teve.
As estrelas jamais lhe tocariam
agora que as suas maçãs do rosto
pendem como varandas vazias
num prédio sem amantes.

O amante. O desespero. A rosa azul impressa em manto branco escarnecia dos deuses e tomava para si a posse niilista de um ábaco-das-almas, contabilizando os erros irreversíveis de uma temática batida.

Uma a uma, as rodas dentadas do grande plano giravam isoladas - ele, ela, o desejo, a divindade. Que mais existe, afinal? E enquanto assentia com a cabeça, o mecanismo unificara-se e os planos desdividiam-se, o metal fundia-se na massa líquida incandescente que viria a criar o novo ser, o anjo.

Os seus olhos eram feitos de vidro de garrafa. Tinha uma rosa-azul tatuada no dedo indicador, cujo caule se enrolava no dedo primeiro, depois na mão, e subia-lhe até meio do braço. Os seus cabelos ruivos desalinhavam-se em caracóis que lhe cobriam os seios, responsáveis pela produção de amor; era ali que sentia tudo, e todo o seu corpo batia como um coração gigante, caso os corações fossem capazes de irradiar luz. Não era muito alta, nem tão pouco uma mulher; não tinha sexo, tinha ambos os sexos, era capaz de se amar a si próprio. As suas maçãs do rosto convidavam os beijos dos cometas e dos astros, e era com o pó das estrelas que se maquilhava ao som de mil auroras boreais e o gotejar distante de uma cascata paradisíaca; e porquanto não falasse, a sua voz entoava como se o mundo se enchesse de água cristalina.

As suas roupas eram as almas dos transviados, daqueles que desesperam pela solidão. Os seus botões de punho eram os gritos dos amantes suicidas, os seus brincos de pérola faziam-se com a dor dos abandonados, o seu regaço coliseu das mais arrebatadoras paixões, que afagava com carinho uma a uma, em movimentos circulares, no sentido dos ponteiros do relógio; e todo ele era, em si, de uma calma impressionante, inspiradora do mais aconchegante branco do passar dos séculos.

Por baixo da sua pele transparente, o sangue circulava como cem mil beijos no corpo do amante, e dos arrepios provocados pela sua passagem brotavam nascentes e rios e lagos e sombras de árvores, adornadas pelas incessantes melodias de pássaros belos.

O amante e amado, o anjo, personificava o amor em si, e os seus lábios tinham o toque de mil orgasmos pacíficos, cuja energia era suficiente para condenar à morte quem se atrevesse a beijá-los. E, no seu todo, o anjo era o ser mais lindo que alguma vez existiu, e cada lágrima sua chorava o nascimento de uma nova criança, ligada por um fio de prumo invisível aos poros das suas mãos.

E assim ficava: calado, de pé, contemplando o mundo, na esperança que um dia o viessem buscar.

* Dedicado aos Jograis Utópico, e mais concretamente ao Manuel Diogo, com um especial obrigado, por me ter despertado à consciência da poesia que existe, em cada palavra; e também, afinal, em mim. Parabéns pelo 9º aniversário.